Analisando as Falhas de Artigos Científicos Criacionistas, Parte 3 – Michael Behe

Veja a introdução à essa série AQUI.

Bom dia/tarde/noite novamente, querido leitor. Estamos de volta para analisar se os artigos criacionistas possuem algum mérito. Após analisar o artigo de Stephen Meyer – uma verdadeira catástrofe envolvida em escândalos éticos – vamos agora analisar os artigos de Michael Behe. Especificamente, os dois onde ele é Primeiro Autor naquela lista:

1 – Michael Behe and David W. Snoke, “Simulating evolution by gene duplication of protein features that require multiple amino acid residues,” Protein Science, Vol. 13 (2004).

e

2 – Michael J. Behe, “Experimental Evolution, Loss-of-Function Mutations, and ‘The First Rule of Adaptive Evolution,’” The Quarterly Review of Biology, Vol. 85(4):1-27 (December 2010).

E aqui já começamos um pouco melhor do que semana passada. Michael Behe, ao contrário de Stephen Meyer, tem uma formação em campos que se aproximam da biologia evolutiva, sendo bacharel em Química e Doutor em Bioquímica. Não é O campo ideal para opinar sobre Evolução, mas pelo menos é algo que efetivamente entra na área das Ciências Biológicas.

Michael Behe é professor de Bioquímica na Leigh University, membro do Discovery Institute (olha ela aí de novo) e autor de alguns livros anti-evolução, o mais famoso sendo Darwin’s Black Box. Importante dizer: em teoria, Behe não nega a ancestralidade comum dos seres (páginas 5-6 de Darwin’s Black Box e 71-72 de Edge of Evolution. As citações podem ser encontradas, em inglês, na sua página na Wikipedia).

Em Darwin’s Black Box, Behe apela para o outro argumento mais comum dos criacionistas:  Complexidade Irredutível. Esse argumento traça suas origens à William Paley, em 1800, quando este fez a famosa analogia do relojoeiro: Se você encontrar um relógio no meio da natureza, você não vai assumir que ele surgiu espontaneamente, e sim que foi criado. “Um relógio implica um relojoeiro”. Assim, seres vivos, máquinas muito mais complexas do que qualquer relógio, também necessariamente precisam de um criador. Behe ressuscitou esse argumento, afirmando que certas estruturas são irredutivelmente complexas. Ele fez uma analogia com uma ratoeira, que não funciona sem suas peças, e cujas peças não tem valor além de compôr o todo (da ratoeira) e, portanto, a ratoeira não poderia ter surgido através de etapas graduais porque nenhuma peça dela tem valor isoladamente. Em organismos biológicos, ele apresenta o flagelo bacteriano e o sistema de coagulação sanguínea como exemplos de estruturas teoricamente “Complexamente Irredutíveis”, novamente ecoando erros do passado. O olho humano já foi considerado uma estrutura complexamente irredutível… Até que pesquisadores conseguiram compreender e inclusive traçar toda a história evolutiva do desenvolvimento do aparelho ocular. Esse é o problema comum com a Complexidade Irredutível – é uma versão da falácia do apelo à ignorância. É uma variação de “Eu não sei explicar, hoje, como isso surgiu por processos naturais, logo claramente não pode ter surgido por processos naturais”. Quando a ciência mostra que essa afirmação estava errada, os criacionistas partem para outra estrutura cuja explicação ainda não é clara, e afirmam que agora sim com certeza se trata de uma estrutura irredutivelmente complexa. E, naturalmente, nós já entendemos o suficiente sobre o flagelo bacteriano e o sistema de coagulação para sabermos que eles não são “irredutivelmente complexos”, e que surgiram através do processo evolutivo

Recentemente traduzi um artigo da Scientific American para o Universo Racionalista intitulado “15 respostas à besteiras criacionistas”. Tal qual fiz no artigo anterior, os redireciono para lá, pois o mesmo item – o item 15 da lista – faz um trabalho fenomenal em expôr os erros tanto da Complexidade Irredutível quanto da Complexidade Especificada. O artigo da Wikipedia e da RationalWiki também mostram de forma bastante didática o porque esse argumento é falho.

Outro assunto que precisarei retomar aqui é o caso Kitzmiller vs. Dover Area School District, o caso legal americano que julgou a tentativa de ensinar o Design Inteligente nas escolas, resultando no veredicto de que o Design Inteligente nada mais era que outra roupagem do Criacionismo, uma crença religiosa e não ciência. Behe foi chamado como testemunha especialista para o caso, e seu testemunho basicamente destruiu as esperanças do Criacionismo se estabelecer como uma doutrina passível de ser ensinada na escola. Sob testemunho, Behe foi encurralado até ser forçado a admitir que o design inteligente não possuía sustentação empírica de artigos revisados por pares (Confira o transcrito da testemunha AQUI, em inglês) e que sua definição de teoria científica era tão ridiculamente abrangente que até Astrologia poderia ser considerada uma ciência.

Por fim, para encerrar, deixo duas informações. A primeira, é que o próprio departamento onde Behe trabalha, na Leigh University, já publicou uma declaração de que as afirmações de Behe não são apoiadas pelo departamento, que o departamento é “Inequívoco em seu apoio à evolução” e que “O Design Inteligente não possui base na ciência, nunca foi testado experimentalmente, e não deve ser considerado científico”.

A segunda é uma análise da produtividade de Behe, realizado pelo Dr. David Lampe, pesquisador associado na Duquesne University. Ele compara o trabalho de Behe com o de seu colega Sean B. Caroll da University of Wisconsin, que estuda biologia evolutiva. O que Lampe descobriu é que Behe, até 2005, Behe constava 17 publicações… Das quais apenas 4 eram artigos científicos publicados em um periódico revisado por pares. (Atualmente, a Wikipedia lista 15 artigos em periódicos, o que é um número baixísismo para um pesquisador com 30 anos de carreira). Porém, 3 desses eram de sua época pré-defensor do Criacionismo. Do período após se tornar um defensor até 2005, havia publicado apenas UM paper (O primeiro que analisaremos aqui). Mesmo na Wikipedia, apenas 5 publicações são citadas como relacionados à evolução. Dois são cartas-respostas e não artigos efetivamente falando, e um deles é de 1990, antes de Behe se tornar defensor do criacionismo (O que ocorreu em 1996, segundo Lempe). Isso nos deixa com dois artigos supostamente relevantes ao debate da evolução: Justamente os dois que temos acima.

Dois artigos. Em 30 anos.

Não apenas isso, mas Lempe descobriu que Behe, quando testemunhou no caso Kitzmiller, citou um currículo bem mais extenso que o que Lempe descobriu, com 56 publicações. Entre as 39 publicações “extras”, estavam: Traduções da Darwin’s Black Box para 7 línguas (contadas como publicações originais por Behe), 9 textos, cartas e dissertações em revistas religiosas, entre outras. Resumindo, um currículo inflado. Podem conferir a análise de Lempe AQUI.

Ou seja, Behe pode ser mais qualificado que Meyer era no último artigo que abordamos, mas ele ainda está muito abaixo da média em termos de produção (que é a métrica principal utilizada para avaliar cientistas).

Agora, vamos aos artigos.

Michael Behe and David W. Snoke, “Simulating evolution by gene duplication of protein features that require multiple amino acid residues,” Protein Science, Vol. 13 (2004)

Mais uma vez, contarei com auxílio de um texto do Panda’s Thumb, feito por pesquisadores com mais conhecimento do que eu. O texto de Reed A. Cartwright  pode ser lido na íntegra aqui, mas irei incorporar vários elementos do mesmo na análise abaixo.

Também contarei com apoio de uma carta do próprio editor do periódico onde o paper foi publicado, aqui, onde ele menciona várias objeções que outros pesquisadores levantaram ao artigo.

O artigo parte de uma premissa bastante simples: Para uma proteína sofrer uma mudança de função, muitas vezes uma única mutação pontual não é o suficiente, sendo necessárias mudanças em vários aminoácidos para alterar algumas características. O artigo tenta, dessa forma, demonstrar, através de uma modelação matemática, que os genes que codificam essas proteínas sofreriam mutações deletérias (Ou seja, mutações que formariam proteínas sem função) antes de que todas as mutações necessárias para a nova função surgir fossem capazes de ocorrer. Isso em genes duplicados, que é considerado um acontecimento potencialmente favorável ao desenvolvimento de novas funções, porque o organismo, ao possuir duas cópias de um gene, permite que os genes da cópia duplicada mutem sem perder a função original, pois há uma “cópia reserva”. Estima-se que foi assim que surgiram as diversas hemoglobinas, por exemplo.

Devo elogiar o artigo por ter sido majoritariamente honesto (Algo que certamente foi moldado pelo processo de Peer-Review – segundo o próprio Behe, ele queria incluir argumentações de Complexidade Irredutível no artigo, mas os revisores cortaram). Ele aponta suas próprias limitações – especificamente, que o estudo só avalia mutações pontuais em genes duplicados, e que, por não levar em consideração recombinação no modelo, só é válido para células haploides e assexuadas. Mais ainda, a conclusão é bastante comedida.  “Ainda que grandes incertezas persistam, ainda assim é razoável concluir que duplicação genética e mutações pontuais […] é problemática quando múltiplas mutações são necessárias. Assim, como regra, devemos procurar por mecanismos mais complicados, talvez envolvendo inserção, deleção, recombinação, seleção de estados intermediários, ou outros mecanismos, para explicar a maioria das características multiresiduais de proteinas”.

Percebam que a conclusão, em nenhum momento, botou em cheque a evolução. Ela apenas afirma que esse mecanismo específico não parece ser suficiente para gerar novas funções proteicas, e talvez outros sejam capazes de explicar, e que isso deveria ser investigado. Além disso, em nenhum momento o artigo cita o Criacionismo/Design Inteligente, ou invoca a necessidade de um criador.

Esse artigo não derruba e, analisado em um vácuo (Ignorando o fato do Behe ser criacionista), nem tem a pretensão de derrubar a evolução, e muito menos de sustentar o Criacionismo. Mesmo se esse artigo for 100% correto e válido, ele não serve para efetivamente propôr o Criacionismo como modelo alternativo à evolução.

E não estou criticando ou zombando o artigo por isso! É assim que se faz ciência – de forma honesta. Se a conclusão do artigo for válida, o artigo será uma adição interessantíssima ao conhecimento sobre a evolução desses genes. O maior problema aqui seria a inclusão desse artigo pela Discovery na “lista de evidências empíricas do design inteligente”, que é altamente questionável.

Dito isso, é hora de ver os problemas que podem invalidar a conclusão do artigo. Vou começar pelo texto do editor do periódico. Segundo ele, diversos pesquisadores enviaram algumas objeções ao artigo, que incluem diversos fatores que Behe e Snoke desconsideraram em seu texto. Um dos maiores críticos foi o pesquisador  Michael Lynch, professor da Indiana University, que compôs uma carta resposta e a publicou no mesmo periódico. Para começar – e francamente, poderia ter parado aí – Lynch demonstra que o modelo matemático de Behe e Snoke é essencialmente não-darwiniano, pois assume que o processo mutacional que leva à uma nova proteína é neutro até adquirir a mutação necessária para ganhar a função, invés de um processo gradual. Lynch também afirma que o modelo de Behe e Snoke era cheio de assumpções biológicas, desnecessariamente restritivo e “biologicamente não-realista”, o que basicamente garantiria que ele iria falhar. Lynch basicamente refez o modelo matemático, acertando alguns erros biológicos e matemáticos do artigo original,  e sua conclusão foi que o modelo, restritivo por natureza, ainda assim subestimava a taxa de surgimento de novas proteínas, mas mesmo com essas restrições, o modelo revisado por Lynch apresentava resultados muito maiores que os de Behe e Snoke. “Assim, fica claro que genética de populações convencional é perfeitamente adequada para explicar a origem de funções proteicas complexas”.

Por fim, reforço aos leitores que verifiquem o artigo do Panda’s Thumb para uma análise muito mais profunda (Ainda que em inglês) mostrando o quão falho é o artigo. Exploraríamos elas em maior profundidade, mas o nosso texto acabaria ficando longo demais, e o que temos aqui é o suficiente.

Veredito

O Paper tenta provar que UM processo específico não poderia ter levado ao desenvolvimento de novas funções em proteínas, mas o faz através de um modelo não-darwiniano, matemática e biologicamente falho, desnecessariamente restritivo, “sabotando” o próprio resultado (Esperemos que não de propósito – é a linha que separa um erro de uma fraude). Ao mesmo tempo, o artigo sequer tenta fazer um caso em favor do Criacionismo.

Doravante, ele não refuta a evolução, tampouco promove a validade do Criacionismo/DI. O artigo não atinge os itens 2 e 3 da nossa lista de critérios (ausência de falhas relevantes e tentativa de promover evidências da validade do criacionismo invés de apenas evidências contra a evolução).

Michael J. Behe, “Experimental Evolution, Loss-of-Function Mutations, and ‘The First Rule of Adaptive Evolution’” The Quarterly Review of Biology, Vol. 85(4):1-27 (December 2010).

Novamente, me munirei das palavras de pessoas pais experientes que eu. Deixo aqui dois textos explicando os problemas com esse artigo: Esse, de Jerry Coyne, professor da University of Chicago e Esse, novamente do Panda’s Thumb, de autoria anônima.

Este artigo de Michael Behe é uma revisão abrangendo várias décadas de estudos em micro-organismos, incluindo bactérias e vírus, buscando especificar que tipos de mutação parecem estar ocorrendo nesses trabalhos. Ele acaba caindo para um raciocínio semelhante ao do artigo anterior: Que a chance de mutações que reduzam ou anulem uma função é muito maior do que a chance de surgir uma mutação que adicione alguma função. Ele inclusive cria o que ele chama de “Primeira Regra da Evolução Adaptativa”, que ele define como “Quebra ou atenuação de uma proteína codificada funcional cuja perda geraria um ganho adaptativo”. Naturalmente, essa regra não colou, e uma googlada rápida revela-a sendo usada apenas por Behe.

A revisão de Behe tem um problema apontado pelo Panda’s Thumb: Em muitos casos, ele faz revisões de outras revisões, o que pode ser um pouco perigoso. Geralmente é melhor ir diretamente nos trabalhos primários e revisá-los individualmente.

Além disso, o Panda’s Thumb acusa o artigo de ter distorcido definições. O artigo usa o termo “Functional Coded Element”, que seriam, em resumo, novos genes, novos pedaços de genes ou mutações genéticas que levam ao surgimento de novas funções. A resposta do Panda’s Thumb acusa Behe de distorcer essa definição para tornar o ganho de função injustamente difícil de ser provado. Ou seja, novamente, Behe impondo restrições desnecessárias, forçando essas mudanças a serem demonstradas a nível molecular, invés de simplesmente por alterações no fenótipo (Ou seja, na função em si). Além disso, Behe classifica de forma arbitrária o que é ganho, perda ou modificação de função, de forma à levar a sua conclusão (aparentemente pré-estabelecida) de que a maioria das ocorrências são de perda e modificação de função e não ganho.

E isso releva o plano de Michael Behe. Ele não tentou o mesmo ângulo de Stephen Meyer, de tentar desacreditar a evolução como um todo. De fato, nos artigos, ele não faz isso. Ele tenta meramente botar em cheque a capacidade da evolução criar nova informação, ao afirmar que a perda de informação seria mais intensa que o surgimento da mesma, tentando levar assim o leitor a aceitar seu conceito falacioso de Complexidade Irredutível. Ele é, de certa forma, mais inteligente que Meyer – ataque uma peça por vez, invés de tentar derrubar a máquina de uma vez só.

O texto de Jerry Coyne é consideravelmente mais gentil – Jerry afirma que o trabalho, à primeira vista, parece sólido, uma revisão razoavelmente competente de décadas de trabalhos de mutação pontual à curto prazo em microorganismos em ambientes laboratoriais – e NADA além disso. Os resultados não podem ser extrapolados para qualquer coisa além disso, por alguns motivos que Jerry destaca:

1 – Os estudos revisados são todos laboratoriais, e não lidam com um processo natural muito importante: O ganho de novas funções através da incorporação de DNA de outros microorganismos. É uma importante forma de ganho de características em bactérias (como resistência).

2 – Os trabalhos laboratoriais são de curta duração, geralmente investigando mutações pontuais. Eles não permitem tempo suficiente para funções novas surgirem. Efetivamente, a natureza dos trabalhos que Behe analisou dificulta o surgimento de novas funções por mutação, algo que requer tempo. Behe admite isso no trabalho, mas desconversa. Isso não é um problema para a validade da revisão, mas definitivamente compromete o extrapolamento de seus resultados.

3 – Os estudos ignoram completamente os eucariotos – o tipo de vida que inclui seres unicelulares mais complexos e seres multicelulares. Em Eucariotos, há uma extensa literatura de ganho de função advindo de mutações, graças à processos como divergência e duplicação de genes.

Jerry conclui de maneira melhor do que eu poderia:

“Ainda que o estudo de Behe seja útil em sumarizar como a evolução adaptativa operou à curto prazo em bacterias e virus no laboratório, é muito menos útil em sumarizar como a evolução ocorreu ocorreu à longo prazo em bacterias e virus na natureza – ou em eucariotos na natureza. Nesse sentido ele não diz nada sobre se novos genes e funções gênicas foram importantes na evolução da vida. Em verdade, Behe não faz tal afirmação grandiosa – o artigo não teria sido publicado se tivesse – mas não há dúvidas que seus acólitos criacionistas usarão o artigo dessa forma”

O fato que ele estava na lista que me foi dada como criacionistas como “artigos que sustentam o Criacionismo/DI” mostra que claramente o Dr. Jerry estava certo.

Veredito

De longe o artigo mais “válido” dessa lista até agora, trata-se de uma revisão de certo valor, mas de aplicação limitada. Ela sequer cita o Criacionismo/DI e não chega a efetivamente afrontar a Evolução, apesar de tentar botar uma semente de dúvida no leitor. Porém, não é possível extrapolar as conclusões dessa revisão dessa maneira. Ela não é um artigo que sustenta o criacionismo, apesar de não ser o desastre dos anteriores. Novamente, falha nos pontos 2 e (principalmente) 3 da nossa lista de critérios.

Com isso encerramos a análise dos trabalhos de Michael Behe. Na próxima, analisaremos três papers do Dr. Douglas D. Axe. Até lá!

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