Analisando as Falhas de Artigos Científicos Criacionistas, Parte 2 – Stephen Meyer

Leia a introdução dessa série AQUI

Hoje começamos analisando nosso primeiro artigo, de um dos maiores nomes do movimento criacionista.

Stephen C. Meyer, “The origin of biological information and the higher taxonomic categories,” Proceedings of the Biological Society of Washington, Vol. 117(2):213-239 (2004)

Antes de começar, vale a pena falar uma coisa sobre o autor do paper, Stephen C. Meyer: Ele é diretor do Discovery Institute, a principal organização por trás do movimento do Design Inteligente americano. Discovery Institute. Anotem esse nome, pois ele vai aparecer muitas vezes ao longo dessa série.

Até aí, tudo bem – cientistas enviesados ou com noções pré-estabelecidas podem fazer boa ciência mesmo assim. O que importa é a força dos dados, então vamos à eles.

Começamos com o maior dos avisos que algo está errado: Este artigo foi removido do periódico onde foi originalmente publicado. Esse incidente é conhecido como a Sternberg peer review controversy. O artigo, de fato, foi publicado em um periódico científico legítimo, o Proceedings of the Biological Society of Washington, que é uma publicação pequena mas respeitada dentro da sua sub-área (No sentido de “área dentro de uma área”, não em sentido pejorativo).

O artigo foi removido do periódico após uma declaração do Conselho de Editores do mesmo afirmando que o editor responsável pelo artigo – Richard M. Sternberg – tomou o processo de revisão e publicação do artigo em suas próprias mãos, sem consultar editores associados ou contar com a ajuda de outros editores e revisores, o que ia contra as regras internas de revisão do periódico. Sternberg elegeu a si mesmo como único revisor do artigo, alegando ser o mais qualificado – o que era uma mentira, pois haviam editores mais qualificados para lidar com o assunto do artigo dentro da equipe editorial – e posteriormente descobriu-se que Sternberg tinha ligações com grupos que negavam a evolução e com o próprio Meyer, o que bota em cheque sua legitimidade como um revisor neutro para este artigo. Basicamente, lembram quando eu falei que artigos científicos passam por uma revisão por outros cientistas independentes antes de ser aceito para a publicação? Esse aqui, ao que tudo indica, foi publicado sem uma revisão criteriosa (Ou, na melhor das hipóteses, não consegue comprovar que passou por ela), passando pela mão de um editor potencialmente parcial e que cuidou do processo de revisão sozinho, o que por si só invalida qualquer trabalho científico. Poderíamos encerrar tranquilamente este texto por aqui, mas preferimos ir um passo além.

O autor, Stephen Meyer, é formado em Física e Geologia, e seu doutorado – que é bem mais importante que a graduação para a formação de um cientista – é em Filosofia da Ciência. Isso torna Meyer uma pessoa pouco qualificada para discutir biologia evolutiva – papel que, obviamente, seria dos biólogos, especialmente aqueles com doutorado no assunto. Falta de qualificação é um problema recorrente no movimento criacionista, como veremos ao longo dessa série.

Em resumo, temos um autor pouco qualificado para este tema, cujo artigo teve que ser aprovado de maneira suspeita em um periódico, tendo sido posteriormente retratado. Entendam: não basta um artigo existir, o artigo tem que estar publicado em um periódico científico, passar pelos processos corretos de revisão e convencer os outros cientistas. O artigo foi removido e, portanto, não é mais considerado um artigo publicado em periódico. Estes objetivos não foram alcançados.

E isso tudo antes de sequer começarmos a leitura!

Outro ponto relevante é que se trata de um artigo de revisão. Artigos de revisão são essenciais na ciência, pois sintetizam o conhecimento adquirido até o momento sobre algum assunto. Também estão entre os textos mais acessíveis dentro da ciência. Porém artigos de revisão não são evidência de nada – eles agregam evidências anteriores. Ou seja, esse artigo de revisão só serve como “evidência a favor do Criacionismo” (como a lista da Discovery o apresenta) se ele conseguir demonstrar que existe um agregado de artigos que concluem isso.

Começando a leitura, já vemos algumas coisas que doem os olhos, como a seguinte frase: “A Genética pode ser útil em explicar a microevolução, mas mudanças microevolucionárias em frequências genéticas não foram vistas como capazes de transformar um réptil em um mamífero ou um peixe em um anfíbio”, expressando uma profunda ignorância sobre como a evolução funciona. Primeiro porque a microevolução opera a nível populacional, não de espécie como é a macroevolução, e segundo porque não se trata de um peixe virar um anfíbio, e sim de um ancestral comum que originou tanto peixes quanto anfíbios após milhões de anos de evolução. Afirmar que evolução se trata de répteis virando mamíferos” é de uma ignorância absurda.

O artigo então discorre sobre a Explosão Cambriana, um período fascinante onde a maioria dos filos animais surgiu em um espaço relativamente curto de tempo (comparado com o anterior), e a vida na terra deixou de ser composta apenas de organismos unicelulares para envolver criaturas mais complexas. O próprio Darwin afirmava que a Explosão Cambriana era uma possível objeção à sua teoria da Seleção Natural (Porque é isso que pesquisadores honestos fazem – eles apontam suas próprias falhas, invés de se blindarem, e não tem medo de admitir quando não sabem algo). Felizmente, desde 1850, aprendemos muitas coisas sobre a Explosão Cambriana. Ainda que ela não seja compreendida em sua totalidade, existem diversas possíveis explicações que a tornam compatível com a evolução, e todas sustentadas por dados empíricos – como o aumento dos níveis de oxigênio na terra, o surgimento da camada de ozônio e o influxo de cálcio aos oceanos (Permitindo que os seres desenvolvessem estruturas como dentes e esqueletos). A Wikipedia (em inglês) sumariza bem essas e outras linhas de evidência, com as devidas referências para quem quiser se aprofundar mais. Em resumo: O meio permitiu que os indivíduos se desenvolvessem no ritmo acelerado observado durante a explosão cambriana.

E então o artigo cai no uso da Complexidade Especificada, que é um dos dois principais argumentos usados por criacionistas/DIs. O artigo afirma que o surgimento de novos seres mais complexos exige um aumento da “informação complexa especificada”, como se assumisse que essa é uma medida válida. Não é. A Complexidade Especificada não possui sustentação. Aqui vocês podem ler uma crítica muito bem formulada à complexidade especificada. A própria página da wikipedia, bem como a da RationalWiki , expõem de forma exemplar as falhas deste argumento. E também este artigo da Scientific American que eu traduzi para o Universo Racionalista, no item 15, refuta de maneira didática a Complexidade Especificada:

“Complexidade de um tipo diferente – “complexidade especificada” – é o pilar dos argumentos de Design Inteligente de William A. Dembski da Baylor University em seus livros The Design Inference e No Free Lunch. Essencialmente seu argumento é que seres vivos são complexos de uma maneira que processos aleatórios, não-direcionados nunca poderiam produzir. A única conclusão lógica, Dembski afirma, ecoando Paley 200 anos atrás, é que alguma inteligência superhumana criou e moldou a vida.

O argumento de Dembski possui diversos buracos. É errado insinuar que o campo de explicações consiste apenas de processos aleatórios ou designs inteligentes. Pesquisadores em sistemas não-lineares e autômatos celulares na Santa Fe Institute e em outros lugares demonstraram que processos simples, não-direcionados podem gerar padrões extraordinariamente complexos. Alguma da complexidade observada em organismos pode portanto emergir através de fenômenos naturais que nós por hora mal compreendemos. Mas isso é muito diferente de afirmar que a complexidade não poderia ter surgido naturalmente.”

Ao invocar a Complexidade Especificada em sua argumentação, o artigo de Meyer se torna falho nos níveis mais básicos da lógica. Não passa de uma variação do Apelo à Ignorância, uma falácia, um argumento similar a “Eu não sei como esta estrutura/função/organismo surgiu, portanto foi Deus”. As falhas lógicas desta sentença devem ser óbvias.

Como sempre, fui atrás de críticas à esse trabalho. Encontrei uma fantástica, que pode ser lida aqui, de autoria de Wesley R. Elsberry, o que me poupa um bocado de tempo e me fez perceber problemas que eu não estava vendo por conta própria.

Mayer afirma que “Muitos cientistas e matemáticos questionam a habilidade de mutação e seleção gerar informações na forma de novos genes e proteínas”. Além de não citar quem seriam esses cientistas e matemáticos, essa informação é simplesmente falsa – a ciência é plenamente capaz de explicar o surgimento de genes novos. AQUI há uma lista de vários artigos, incluindo o auto-explanatório “Evolution of Novel Genes” (Evolução de Novos Genes), que foi publicado ANTES do artigo de Mayer, o que torna bastante difícil de explicar como Meyer não o encontrou durante seu processo de revisão.

E essa afirmação, “A evolução não pode explicar o surgimento de novos genes”, é central para o artigo. Com ela derrubada, boa parte do raciocínio da revisão cai por terra.

Além disso o artigo é cheio de outros erros. Como o texto de Wesley demonstra, o artigo sequer tenta dar alguma sustentação ao Design Inteligente, dedicando-se apenas a tentar mostrar que a evolução está errada (Como se isso imediatamente levasse à outra conclusão). Também comete o erro de assumir que “lacunas” no registro fóssil indicam inexistência desses “links” evolutivos, invés de simplesmente se tratarem de coisas que nós ainda não descobrimos. O artigo de Meyer também faz comparações falhas entre o DNA e a linguagem humana, faz a absurda afirmação que a evolução não poderia criar novas morfologias (Ela pode, e isso é bem conhecido – ver os papers no link acima, item “Morphological novelty”).

Veredito

O artigo falhou nos itens 1, 2 e 3 dos nossos critérios. 1 por ter sido retratado (e, portanto, rejeitado a posteriori pela revista quando a acusação de aprovação fraudulenta surgiu), 2 pelos erros lógicos que comete e 3 porque o artigo só se preocupa em rejeitar a evolução invés de comprovar o Criacionismo.

Siga o Mural também no Youtube, no Facebook, no Twitter e no Instagram

sobre-o-autor-lucas-rosa