Covid-19: Os riscos e os benefícios em apressar uma vacina
Quando a Merck & Co. licenciou a sua vacina contra caxumba em 1967, ela estabeleceu um recorde. O processo começou quatro anos antes quando o cientista Maurice Hilleman acordou certa noite com a sua filha de cinco anos de idade doente, esfregou sua garganta e levou uma amostra para o laboratório. Hoje, milhares de pesquisadores de mais de vinte países estão correndo para superar o recorde de Hilleman em desenvolver uma vacina. Em um esforço sem precedentes, eles estão colaborando e competindo em mais de cem projetos para desenvolver a cura da SARS-CoV-2, usando métodos testados e outros ainda não comprovados, inovando para diminuir anos de espera. Com a esperança de acabar com o rastro da pandemia atrelada a essa vacina, as apostas são imensas, assim como os riscos e desafios.
1. Quão rápido a vacina pode ser fabricada?
As primeiras doses podem estar disponíveis ainda este ano, se os seus desenvolvedores evitarem acidentes e atrasos, de acordo com Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos e Richard Hatchett, diretor da Coalizão de Inovação em Preparo contra Pandemias de Oslo, que trabalha em favor de promover novas vacinas. Alcançar esse objetivo seria memorável, considerando que o processo de criar uma vacina convencional, do começo ao fim, leva em média onze anos, e que apenas 6% de todas as vacinas experimentais chegam ao final desse processo.
2. Por que isso geralmente demora tanto?
Uma inoculação leva mais tempo para ser testada pois, diferente de um remédio, ela é injetada em um indivíduo saudável. Depois de testar uma vacina em animais, os cientistas devem provar que é seguro e eficaz em humanos também. Isso normalmente acontece dividido em três etapas, começando com testes em números pequenos de pessoas voltados a alcançar a resposta imune mais forte possível sem graves efeitos colaterais. Depois, os estudos em larga escala começam. A parte final, que frequentemente requer milhares de pacientes e pode durar anos, avalia o papel da vacina na população para a qual ela foi desenvolvida. Se uma vacina passa em todos esses testes, ela então precisa satisfazer os supervisores e ser produzida em vastas quantidades.
3. O que pode trazer a vacina contra a COVID-19 mais rápido?
Os experts já cogitaram inúmeras hipóteses:
- Usando designs inovadores. Mais ou menos um quinto de todos os projetos de vacina contra a COVID-19 baseia-se em algo chamado tecnologia de genes. Essa é uma tecnologia que usa as próprias células do corpo para produzir proteínas e enganar o sistema imunológico para convencê-lo a reagir como se ele estivesse sendo invadido por um patógeno, “treinando-o” para uma infecção real. Essas vacinas experimentais podem ser produzidas mais rapidamente do que as convencionais, que contém uma versão inativa ou enfraquecida do verdadeiro patógeno (ou uma parte dele). Usando uma plataforma de genes, Fauci, sua instituição e a Moderna Inc. começaram o primeiro teste de uma vacina experimental em humanos em um tempo recorde de 66 dias a partir do momento em que pesquisadores chineses tornaram pública a sequência genética do Covid-19. No entanto, há um contraponto importante: nenhuma vacina baseada em genes foi licenciada para o uso em humanos ainda, embora existam poucos exemplos disso na medicina veterinária.
- Comprimir as etapas. Outra razão pela qual a Moderna foi capaz de agir tão depressa foi que ao invés de testar a vacina em animais e depois em humanos, ambas as etapas foram feitas simultaneamente. Para as vacinas da Covid-19, reguladores europeus e americanos dispensaram a exigência de prova de eficácia em animais primeiro.
- Acrescentando a trabalhos anteriores. Pesquisadores da Universidade de Oxford ganharam tempo usando um método que já havia sido aplicado em um projeto em andamento para a vacina da Síndrome Respiratória do Oriente Médio, que também é causada por um coronavírus. A vacina mostrou ser aparentemente segura em animais e nos primeiros testes humanos. A técnica usa um vírus modificado como um condutor indefeso para expôr o sistema imunológico à proteína que se projeta como espinhos da superfície do vírus, feito uma coroa (explicando a origem do nome).
- Adotar testes de “desafio”. No estágio final da testagem, pesquisadores tipicamente dão a vacina a um grupo de voluntários e placebo a outro, e então aguardam para ver se um número significativamente menor no primeiro grupo desenvolveu a infecção, o que leva tempo. Uma alternativa mais rápida, embora mais arriscada, é injetar a vacina nos voluntários e então deliberadamente expô-los ao patógeno. Tais testes de desafio são a base de estudos de vacina em animais, e já foram usados em testes humanos para cólera, malária e tifoide. Um bom número de cientistas proeminentes no assunto discutiram que a urgência da vacina para a Covid-19 justifica o uso desses testes agora, e o site 1daysooner.org já coletou os nomes de dezenas de milhares de pessoas que dizem querer participar. Já os céticos dizem que é antiético usar esse tipo de teste até que existam terapias comprovadas para tratar aqueles que venham a ficar doentes.
4. A vacina é uma questão de tempo?
Apesar da mobilização nunca antes vista, não há garantia de que os desenvolvedores possam entregar uma vacina eficaz. A vacina contra o HIV vem sendo um mistério para os cientistas por anos, assim como uma vacina universal contra todas as variações da gripe, ainda que os pesquisadores cogitem que os coronavírus sejam um alvo mais simples já que eles não se modificam tão rápido quanto outros vírus. O surto da SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave) em 2003, também causada por um coronavírus, foi contido antes mesmo que os pesquisadores pudessem criar uma vacina. Quão eficaz a vacina para a Covid-19 virá a ser e quanto sua proteção durará são outras questões cruciais. Ainda assim, os experts estão otimistas. O diretor da produtora francesa de vacinas Sanofi disse que o ponto chave não é se vacinas bem-sucedidas podem ser criadas, mas quantas doses podem ser produzidas.
5. Quais são os riscos de apressar o processo?
Reguladores europeus em 2011 recomendaram restringir o uso de vacinas da GlaxoSmithKline para a gripe suína devido a ocasionar raros casos de narcolepsia. A vacina contra a Doença de Lyme desenvolvida pela mesma empresa, na época chamada SmithKlineBeecham, foi retirada em 2002 por possíveis conexões a artrite. Algumas vacinas de fato mostraram fazer o oposto do que elas foram desenvolvidas para fazer ao induzir respostas imunológicas não-intencionais. Nos anos 60, uma vacina experimental para a RSV, um vírus de origem respiratória comum, não apenas falhou em proteger crianças mas também as tornou mais suscetíveis, causando a morte de dois bebês. Nos anos recentes, a vacina da dengue produzida pela Sanofi aumentava os sintomas em alguns daqueles que a recebiam. Porém, relatórios comprovados de efeitos colaterais inesperados de novas vacinas são diferentes da crença persistente e incorreta de que vacinas bem-estabelecidas contra doenças infantis trazem riscos significativos. Uma falha vacina da Covid-19 pode causar um estrago ainda maior na percepção geral em torno das vacinas.
6. Se uma vacina for desenvolvida, como ela pode então ser produzida em massa?
Dada a alta taxa de fracasso em vacinas experimentais, os desenvolvedores geralmente não investem na capacidade de manufaturar grandes doses até que haja uma amostra promissora. Nesse caso, alguns dos maiores produtores como Johnson & Johnson, Sanofi e Moderna já estão preparando as indústrias de produção de antemão. CEPI, financiada pelo filantropo Bill Gates, quer criar pólos de manufatura em todas as regiões. Glaxo anunciou que está colaborando com a Sanofi, uma universidade australiana e duas companhias chinesas em projetos que usam seus adjuvantes, ou seja, ingredientes da vacina que aumentam a resposta imunológica, na esperança de tornar mais fácil produzir a vacina em larga escala.
7. Como essas doses seriam distribuídas para todos os cantos do planeta?
Certas populações teriam acesso à vacina antes de outras. Um risco é de que populações mais ricas monopolizem essas doses, um cenário que aconteceu durante a pandemia de gripe suína em 2009. Uma iniciativa de arrecadação lançada pela União Europeia trouxe mais de 10 bilhões de dólares em favor do desenvolvimento das vacinas, tratamentos, testes, e a logística de aplicá-los universalmente. Imunizar o mundo custaria várias vezes esse valor, de acordo com Seth Berkley, diretor da Gavi, uma organização global sem fins lucrativos focada em distribuição de vacinas. O grupo propõe uma medida financeira chamada compromisso antecipado de mercado, voltado inicialmente a distribuir as primeiras doses a profissionais da saúde. Nessa medida, as companhias de vacina concordariam em tornar os seus produtos disponíveis a preços acessíveis em troca de compromissos de financiamento por parte de governos ou outros doadores. Defensores da saúde afirmam que distribuir as vacinas igualmente ao redor do mundo não é só a coisa mais ética a se fazer, mas também uma medida crítica para colocar um fim nessa crise.
Fonte: Bloomberg
Imagem: ABC News