Ossos antigos e nova tecnologia revelam a face da pobreza na Idade Média
Pesquisadores da Universidade de Cambridge reconstruíram a aparência de um homem do século XIII que foi encontrado numa tumba pobre. Apesar de saber qual foi a sua aparência, eles dizem que há muito sobre a sua vida que ainda permanece um mistério.
Traduzido e Adaptado do “The Washington Post”, autor original: Peter Holley
Imagine que você morreu hoje e seu esqueleto bem preservado é escavado por arqueólogos daqui a 800 anos.
Vamos supor que esses detetives do futuro podem extrair suficiente informação dos seus restos para poder elaborar um retrato mais ou menos fiel da sua existência, um que levantasse tantas perguntas acerca da sua identidade e estilo de vida quanto as que fossem respondidas.
Eles podem começar te dando um novo nome – algo típico do começo do século XXI – como “Ethan”, “Liam” ou “Sophia”.
E a leve depressão no lado direito da sua cabeça? Você sabe que ela é resultado de um choque que você sofreu jogando futebol americano na universidade. Os pesquisadores do século XXVIII podem supor que foi outra a causa: uma lesão traumática, do tipo que é relacionada a altas taxas de crime nas metrópoles da virada do milênio, que parecem bárbaras e inabitáveis pelos padrões do futuro.
Como você se sentiria com esse tipo de extrapolação e insinuação? A sua privacidade importa, ou a sua história e o que ela agrega ao registro histórico, importa mais? Você morreu há centenas de anos, afinal.
Essas são exatamente o tipo de questões que o professor John Robb, do Departamento de Arqueologia da Universidade de Cambridge, tem de enfrentar conforme ele e seu grupo de trabalho reconstroem cautelosamente a existência de um homem do século XIII.
Robb, o principal pesquisador, conta que o desafio que a sua equipe encara é reconstruir uma existência remota de uma maneira que humanize o sujeito, ao mesmo tempo em que permanece tão fiel quanto possível à autentica experiência da pessoa.
“Nós temos que humanizar as pessoas que estudamos porque temos problemas em nos relacionar com coisas que nos são estranhas, gravitamos para o que é familiar”, diz Robb. “A questão é se você tem uma responsabilidade ética com a pessoa que você estuda para evitar intencionalmente dizer coisas sobre as pessoas das quais não podemos ter certeza.”
Do que os pesquisadores podem ter certeza é de que o homem do século XIII estava entre 400 esqueletos descobertos em 2010 e 2012, debaixo de um edifício do St John’s College na Universidade de Cambridge, um dos maiores cemitérios de hospitais medievais do Reino Unido. Os enterros são de um hospital de caridade que se localizava no lugar em 1511 e cuidava de um pequeno número de indigentes da cidade, segundo Robb.
Em vez de lhe dar um nome como “John”, “Thomas”, “William” ou “Richard” baseado na frequência estatística dessas alcunhas na Cambridge medieval, os cientistas optaram por uma nomeação mais clínica: “Contexto 958”.
Para os investigadores, ossos bem preservados como os de Contexto 958 – que foram encontrados de bruços em uma tumba pobre – são uma rara janela para o mundo da população urbana pobre. Antes da alfabetização em massa e dos censos nacionais, o mundo dos pobres era frequentemente deixado fora dos registros, especialmente quando se tratava daqueles que não tinham propriedades ou se mantinham longe do sistema judicial.

O professor Robb com os ossos de Contexto 958
Os pesquisadores sabem que Contexto 958 tinha entre 40 e 70 anos quando morreu. Ele tinha um pescoço grosso e uma mandíbula ampla e viril. Com mais de 1,70, ele era ligeiramente acima da média em altura, com “ossos robustos” que mostravam marcas de ligamentos musculares. Robb diz que esses ligamentos sugerem que Contexto 958 passou períodos de sua vida engajado em trabalho físico pesado.
Mas a análise dos isótopos de carbono e nitrogênio do esqueleto de Contexto 958 colocou em questão a caricatura de pobre trabalhador.
“Um dos mais destacados enigmas deste indivíduo é que a química dos seu osso sugere uma dieta rica, que nós normalmente associaríamos com uma condição de status porque quanto mais pobre você fosse, mais você dependia de grãos e vegetais”, segundo Robb. “No seu tempo de trabalho ele pode ter tido um emprego no comércio de alimentos ou talvez ele era um criado e tinha acesso a uma dieta rica. Nós não queremos dar a ele uma história específica a menos que possamos ter certeza de que ela é precisa.”
Apesar da dieta variada e incomum, os pesquisadores acreditam que a vida de Contexto 958 foi marcada por uma acumulação de pequenas doenças que podem ter lhe causado grande desconforto.
O esmalte de seus dentes parou de crescer em duas ocasiões durante sua infância, sugerindo que ele sobreviveu à alguma doença ou passou fome no começo da vida. No fim dela, suas vértebras mostravam óbvios sinais de estresse na coluna, assim como várias fraturas e uma costela quebrada, provavelmente de um golpe ou uma queda. Os investigadores também encontraram evidencia de uma lesão traumática na parte de trás de sua cabeça, que sarou antes dele morrer.
Robb diz que suspeita que as pessoas no século XIII tinham muito mais familiaridade com dores não aliviadas do que as pessoas de hoje.
“Um bom exemplo é a dor de dente, já que ele tinha os dentes mal cuidados, com problemas como a perda de alguns deles e abscessos”, diz Robb, notando que a condição de sua saúde bucal era típica do período em que viveu. “Isso era, em parte, um sério risco à saúde porque um dente infectado poderia causar uma infecção generalizada, mas também significava uma dor considerável”.
“Também houve provavelmente muita violência casual” ele continua. “As fraturas dele podem ter sido causadas por brigas ou elas podem ter sido acidentais.”
Baseado no que os pesquisadores aprenderam com os ossos e dentes de Contexto 958, é tentador tentar preencher os vazios na sua biografia, especialmente agora que os investigadores tem alguma ideia de qual era a sua aparência.
Em colaboração com pesquisadores do Centro de Anatomia e Identificação Humana da Universidade de Dundee (Escócia), a equipe de Robb foi recentemente notícia ao recrutar artistas forenses para recriar o rosto de Contexto 958.
Saber qual era aparência de alguém pode ser uma maneira de trazer a pessoa de volta à vida, diz Robb, mas na realidade diz muito pouco acerca de como ela viveu. Se hoje você ver na rua Contexto 958 vestindo roupas modernas, diz Robb, você não teria ideia de que ele nasceu na Idade Média.
“Se ele fosse vestido apropriadamente poderia parecer completamente típico,” segundo Robb. “A reconstrução facial foi interessante. A maioria dos comentários dizia coisas como, ‘Ele parece com meu vizinho.”
“Nós sentimos que isso é uma demonstração de sucesso”, completa o pesquisador.
Referência:
The Washington Post-“Ancient bones and new technology reveal the face of medieval poverty.”